segunda-feira, 8 de setembro de 2014

O ATO DE (R)EXISTIR

Durante os dias 2 e 7 de setembro, a cidade de Cachoeira, Bahia, sediou o CachoeiraDoc, o Festival de Documentários da cidade. Com a apresentação de quase 40 produções, dentre mostras especiais e competitiva, o evento contou com a participação dos realizadores dos filmes, dos alunos e professores da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, da população cachoeirana e de profissionais de diversas áreas.



O Festival iniciou na noite de terça (02) em grande estilo com a apresentação do longa documentário de Eduardo Coutinho, “Cabra Marcado para Morrer” (1984). O filme relata a história de um homem que lutava por seus direitos e de todos com quem convivia e acabou sendo brutalmente assassinado. A origem do documentário é a tentativa de Coutinho em filmar uma ficção sobre a luta do líder camponês João Pedro Teixeira. Interrompido pela ditadura em 1964, Coutinho retornou 20 anos depois e fez o documentário lembrando das filmagens e realidades da época e contrapondo-as com a vida da esposa do camponês, Elizabeth Teixeira, que se tornou ativista pela causa.
O tempo foi cruel com essa mulher forte e esperançosa que vemos na tela: Elizabeth foi obrigada a deixar os filhos para trás e ser testemunha em dezenas de processos abertos pelas revoltas camponesas e pela realização do filme. Além dela, outras pessoas que participaram das filmagens também relatam suas lembranças e histórias. De forma intimista, Coutinho adentra a vida pessoal de cada um desses personagens – nos quais estão incluídos alguns dos 12 filhos de João e Elizabeth - e traz revelações inusitadas. O cineasta, porém, não esquece de denunciar a Ditadura trazendo para a tela declarações do governo que diziam que o filme que estava sendo filmado por ele era uma forma de reunir revoltosos e estimular a desordem no país.
A sessão sobre a família Teixeira continuou no dia seguinte com a apresentação do filme “A Família de Elizabeth Teixeira” (2014). Trinta anos após a realização do primeiro filme, Elizabeth é uma idosa de 87 anos com alguns de seus filhos espalhados pelo Brasil e outros perdidos há muito tempo. Nesse longa, Coutinho opta por mostrar a vida dos filhos da matriarca: vai do sudeste ao nordeste revelando as diferentes vidas que a prole de um dos maiores líderes da reforma agrária levam. Assim, o diretor volta a revelar histórias cada vez mais intimistas e curiosas. Cada filho de Elizabeth lembra de alguma coisa muito diferente, cada um passou por experiências inusitadas devido à perseguição sofrida pela família. Para finalizar, Coutinho ainda conta com a surpresa de saber que uma das netas do casal se tornou professora de história e trabalha com a restauração e recuperação da memória das lutas de João Pedro e Elizabeth Teixeira.

Elizabeth Teixeira e os filhos logo após a morte do marido.
O diretor faz uma ligação entre o passado (décadas de 1964 e 1984, quando tentou gravar a ficção e quando gravou o primeiro documentário, respectivamente) e os dias de hoje (2013). E nessa tentativa de comparar e denunciar, Coutinho exagera ao adentrar no mais profundo íntimo de seus personagens. Não que isso o torne apelativo, mas é exagerado. No final das contas, o que o cineasta faz é revelar o Brasil de forma nua e crua, sem pudor em mostrar os sofrimentos e as consequências advindas do período da ditadura. Por vezes, desrespeitando os limites do que pode ser público e do que, preferencialmente, deveria permanecer em âmbito privado. Para concluir essa denúncia com o filme apresentado no segundo dia do evento – que, na realidade, é um extra do DVD do filme de 1984 - o documentarista acaba trazendo toda a diversidade brasileira em um filme que trata apenas do povo brasileiro.
Cabra marcado para morrer fez parte da Mostra Resistência apresentada pelo festival. No sábado (06), os curtas Manhã cinzenta e África 50 e o média Primeiro caso, segundo caso fecharam a mostra que tinha como objetivo trazer filmes que contém como temática a resistência frente a repressão. Cada um deles foi filmado em um local diferente do mundo, mas todos acabaram sendo perseguidos pelos governos vigentes e até proibidos, sendo vistos como filmes subversivos para suas épocas. O mesmo, como citado acima, ocorreu com Cabra marcado para morrer. Manhã cinzenta também tem como pano de fundo a ditadura no Brasil; África 50 mostra uma África na década de 1950 explorada pelo protecionismo francês; e Primeiro caso, segundo caso foi filmado durante o processo que culminou na queda da monarquia islâmica e na ascensão da república no Irã.
De Olney São Paulo, Manhã cinzenta teve seus negativos confiscados pela ditadura em 1969. O curta mistura realidade e ficção para mostrar os terrores feitos pelos políticos da época. Mas Olney não mostra apenas o terror, ovaciona aqueles que manifestaram. De forma simples, trata os manifestantes como verdadeiros heróis que, infelizmente, não terão a mesma vitória certa que acompanha os heróis das histórias em quadrinho, muito pelo contrário. E é para mostrar essa frustração que o diretor sufoca o espectador através de cenas pavorosas e por uma trilha sonora forte e expressiva. Em uma cena desesperadora, por exemplo, uma personagem corre de um lado a outro fugindo de vários soltados que apontam suas armas para ela, enquanto isso, um homem fica parado apenas esperando que seu destino seja selado pela munição que deixará aquelas armas e se impregnará em seu corpo.


Indivíduos curiosos, uma vida tranquila e muita cultura compõe as primeiras cenas de África 50, de René Vautier. O diretor, assim, apresenta a beleza do povo africano, foca em crianças que olham sua câmera com o desejo de conhecer o objeto, mostra a tradição e o modo de vida adotados por aquele povo e a forma carinhosa com a qual tratam uns aos outros. Depois, entretanto, Vautier deixa os sorrisos, as brincadeiras e as danças de lado e esbofeteia o público com cenas aterradoras da exploração europeia nas colônias da África Ocidental Francesa. O que antes era belo e harmônico passa a se tornar triste e tão sufocante quanto as cenas de Manhã cinzenta. As mulheres que antes arrumavam os cabelos estão mortas, as crianças que antes pulavam alegremente nas águas estão mortas, os homens que antes cuidavam dos animais que alimentariam suas famílias também estão mortos. E todas essas mortes são ocasionadas por um motivo incompreensível, mas simples: a sede de poder que envolve os franceses e o capitalismo, que, sem dúvida, é o maior aliado nessa busca incansável.
Imagine essa cena: um professor está de costas escrevendo no quadro, um garoto, no fundo da sala, bate um apagador na mesa. Sem conseguir identificar o aluno, o professor ordena que os jovens do fundo da sala saiam e voltem apenas em duas circunstâncias: ou quando contarem quem é o “culpado”, ou após passarem uma semana do lado de fora. Baseado nessa encenação, Primeiro caso, segundo caso questiona a solidariedade de grupo e o sistema vigente que faz de tudo para dissolver qualquer grupo que possua opiniões próprias. Para que as mais diversas pessoas possam dar suas opiniões – o que inclui, por exemplo, estudiosos e líderes religiosos e políticos -, o diretor apresenta as duas escolhas que podem ser feitas pelos alunos: na primeira, um aluno revela quem é o culpado e volta para dentro da sala de aula cabisbaixo e, aparentemente, envergonhado, no segundo momento, todos esperam a uma semana e voltam orgulhosos para a sala de aula. Qual seria a melhor opção? Ceder de imediato ao sistema, ou se mostrar resistente e acabar, uma hora ou outra, retornando ao regime? A Revolução Iraniana, por exemplo, trocou o sistema autoritário monárquico, por uma república comandada por líderes militares religiosos radicais. O que você iria preferir?

Como boa parte do planeta, o Brasil, a África e o Irã foram dominados por ideologias radicais que estabeleceram seus regimes de forma autoritária e violenta. A boa notícia é que o povo brasileiro se revoltou e pediu por um governo justo e realmente democrático para que a ditadura terminasse em 1985. Em 1958, a independência da Guiné fez com que os demais territórios africanos começassem a se erguer contra o sistema vigente, o que culminou na independência total até 1960. Há pouco tempo, a Primavera Árabe modificou as realidades sociopolíticas de todos os países da região, e com o Irã não foi diferente. Mais que denunciar os abusos políticos pelos quais o mundo passou, todos os filmes da Mostra Resistência lembram a importância de a população se erguer contra tais regimes. No ano passado, manifestações no Brasil pediram por melhores condições no país. Mais que exercer seu papel como cidadão, o povo deve clamar por igualdade, resistindo a parâmetros que fogem completamente aos direitos de liberdade de expressão, construindo uma identidade forte e exemplar, passando, assim, a existir de forma concreta.

Após a sessão de sábado (06), Ivana Bentes, professora associada do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRJ, coordenadora do Pontão de Cultura Digital da ECO/UFRJ e curadora na área de arte, mídia, cinema, audiovisual comentou sobre os filmes e sobre a Mostra Resistência, destacando a importância dos filmes apresentados durante o festival para a construção de uma sociedade moderna e desenvolvida.
(Foto: Tiago Araujo)
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